Tivesse o artigo que se segue sido escrito por qualquer católico anónimo e nada teria a dizer àcerca do seu conteúdo ou oportunidade.
Tal como aquele a quem o artigo pretende atingir sempre defendeu consequentemente, o direito à opinião livre é isso mesmo um direito inalienável.
José Saramago era polémico? Pois era! Mas também directo e frontal e não um qualquer escrevinhador "manga de alpaca", que na penumbra, escondido do mundo e dos olhos críticos das pessoas a quem se dirige, vai garatujando umas coisas quaisquer sobre qualquer coisa ou sobre uma qualquer pessoa, usando uma tribuna paga por um qualquer grupo, a expensas dos generosos e anónimos contribuintes que com os seus óbolos, as suas esmolas e os seus donativos o vão alimentando.
L'Osservatore Romano - o Órgão oficial da Santa Sé - ao escrever hoje o que escreveu sobre José Saramago - no dia do seu enterro - colocou-se ao nível de um qualquer e ignóbil pasquim, esquecendo aliás os mais elementares e genuínos princípios da piedade Cristã - até porque, segundo esses mesmos princípios "a morte mais não é do que uma nova forma de vida" e o momento da "passagem" é por vezes tão intenso e transcendente, que reconciliações verdadeiramente improváveis que ninguém pode em boa verdade testemunhar ou negar, podem sempre ocorrer...
Mas também não se pode esperar demasiada generosidade de uma Igreja que enquistou há demasiado tempo num silêncio cúmplice em relação a tantas e tantas opressões: O tempo demasiado que levou a reconhecer - e mesmo assim sem grande convicção - o hediondo comportamento que teve na altura da "Santa Inquisição", o colaboracionismo que ao longo de muitos anos sempre patenteou com tantos regimes totalitários, a ignóbil teia de "solidariedades" com que protegeu - activamente nalguns casos e passivamente em muitos outros - bandos de padres pedófilos, alguns verdadeiros predadores sexuais espalhados por todo o mundo Católico e que só muito recentemente e a muito custo e porque a situação se tornou demasiado gritante e incómoda, é que motivou um tímido pedido de perdão por parte do Papa.
Mas esta tremenda diatribe do L'Ossevatore Romano, tem além do mais a enorme inconveniência da inoportunidade: Teve tantas oportunidades de atacar José Saramago em vida, que escolher a hora em que ele não lhe pode responder é verdadeiramente condenável. Ainda bem que essa a idiotice que grassa pelas sacristias de Roma não alastrou à Igreja Católica portuguesa.
Na hora da morte - seja quem for que tenha morrido - exige-se contenção, discrição, recolhimento, ou no mínimo, RESPEITO!
A ignóbil notícia é a que se segue:
Jornal do Vaticano define Saramago como “populista e extremista”
Um dia depois da morte do Nobel da Literatura de 1998, o diário da Santa Sé publica um obituário intitulado “A (presumível) omnipotência do narrador”, assinado por Claudio Toscani. “Foi um homem e um intelectual de nenhuma admissão metafísica, ancorado até ao final numa confiança arbitrária no materialismo histórico, aliás marxismo”, lê-se no artigo.
“Colocado lucidamente entre o joio no evangélico campo de trigo, declara-se sem sono pelo pensamento das cruzadas ou da Inquisição, esquecendo a memória do ‘gulag’, das purgas, dos genocídios, dos ‘samizdat’ culturais e religiosos”, acrescenta.
O texto passa em revista a produção literária do escritor português, qualificando o romance “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991) de “obra irreverente” que constitui um “desafio à memória do cristianismo”.
“Relativamente à religião, atada como esteve sempre a sua mente por uma destabilizadora intenção de tornar banal o sagrado e por um materialismo libertário que quanto mais avançava nos anos mais se radicalizava, Saramago não se deixou nunca abandonar por uma incómoda simplicidade teológica”, escreve Toscani.
“Um populista extremista como ele, que tomou a seu cargo o porquê do mal do mundo, deveria ter abordado em primeiro lugar o problema das erróneas estruturas humanas, das histórico-políticas às socio-económicas, em vez de saltar para o plano metafísico”, acrescenta.
O artigo afirma que Saramago não devia ter “culpado, sobretudo demasiado comodamente e longe de qualquer outra consideração, um Deus no qual nunca acreditou, através da sua omnipotência, da sua omnisciência, da sua omniclarividência”.
Consequente com aquela que tem sido a sua práxis a Igreja Católica juntou mais um "contributo" para o esvaziamento das igrejas e o alheamento dos católicos relativamente àquilo que defende - ou diz defender.
Quando resolve centrar o essencial dos seus esforços no combate das ideias - ainda que na sua perspectiva criticáveis - como fez com José Saramago e não nos actos criminosos em relação aos quais nos atordoa com o seu silêncio, escolhe obviamente o caminho errado:
As ideias, porque permitem o contraditório, nunca provocam danos irreversíveis. Já a protecção e a solidariedade para com os criminosos, o silêncio ou mesmo a conivência em relação a práticas como a pedofilia, os atentados aos direitos humanos mais elementares, o genocídio, essas sim são escolhas que afastam, que causam repulsa, que revoltam e que dão força àqueles que defendem uma atitude para com a Igreja Católica idêntica à que ela adoptou no tempo da Inquisição...