O PCP E A ARTE DE DAR ‘TIROS NOS PÉS’ – A OPINIÃO DE UM EX-MILITANTE COMUNISTA (QUE NÃO ME ENVERGONHO DE TER SIDO)...
A Grande Revolução Russa de 1917 deu-se num contexto histórico de profunda decadência da monarquia russa (czarismo) e a relevância e a expansão do movimento comunista internacional ocorrida logo a seguir, encontrou portanto terreno fértil para se desenvolver .
De facto, logo a seguir à primeira Grande Guerra, a Rússia tinha caminhado para uma grande industrialização e, ao mesmo tempo, um grande desenvolvimento da agricultura graças à introdução de novos meios e novos factores de produção. Daí que as bases da grande força centrífuga do Movimento Comunista Internacional a partir da Rússia tenham assentado durante muito tempo num slogan identitário e agregador: “Proletários (operários e camponeses) de todo o mundo uni-vos!” - Manifesto Comunista
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Proletários_de_todos_os_pa%C3%ADses,_uni-vos!).
Para abreviar, e evitar longas dissertações históricas que não vêm ao caso, foi assim que Lenin, que não era nem operário nem camponês alavancou a sua luta inicial, de forma genuína, ao lado do Povo e por isso mesmo, enfrentando oposições internas fortes dos intelectuais de cujo meio ele próprio emergia.
Lenin era, ao contrário do que veio a acontecer com os líderes dos vários partidos comunistas que emergiram em todo o mundo – e também na URSS – um ‘proletário intelectual’ (se é que esta designação pode ser usada) mas NUNCA um burocrata – aquilo em que se transformaram muitos outros dirigentes partidários.
Portanto, não espanta o crescente descrédito do ‘movimento’ no seio das suas bases (proletários) o que levou a que, muitos anos mais tarde, a ‘pátria’ do socialismo (comunismo) na configuração desse tempo (URSS) tivesse que investir muitos meios na formação de novos quadros (burocratas) preparados de forma intensiva e em ‘fornadas' sucessivas (na Escola Superior de Marxismo-Leninismo em Moscovo) para disseminar a ‘ideia’ um pouco por todo o mundo.
Em 1976 eu era um operário filiado no PCP após o 25 de Abril, portanto, ávido do conhecimento que muito já tinham sobre o movimento e ferramentas (ideologia) para ajudar a expandi-lo. Aceitei por isso com entusiasmo os 7 meses que me propuseram para essa formação a ter lugar em Moscovo.
Integrei um grupo de cerca de dezena e meia de camaradas e por lá nos cruzamos com grupos de igual dimensão, militantes de dezenas de partidos irmãos – Grécia, Turquia, Brasil, Cuba, França, etc., etc.
Mas esse enorme investimento do PCUS (Partido Comunista da União Soviética na terminologia ocidental) tinha riscos:
- Os formandos circulavam livremente entre a população e contactavam com a mesma livremente – impedir esse contacto de alguma forma pareceria estranho...
- Desse contacto resultava (inevitavelmente) o conhecimento de uma realidade sobre a vida do povo soviético nada simpática – dificuldades no acesso à habitação (havia apartamentos equiparados aos nossos T2/3 que tinha de ser partilhados por 2 ou 3 famílias diferentes e sem qualquer ligação entre elas);
- Havia dificuldades no abastecimento de bens de consumo e alimentos, formando-se habitualmente grandes filas para o acessos a mercados, superfícies comerciais, padarias, etc.;
- Os estrangeiros protegidos do partido podiam, ao contrário da população, pagar em divisas, sobretudo US Dólares, e tinham mesmo à disposição uma espécie de ‘lojas francas’ onde podiam encontrar bens e produtos que não existiam no mercado normal (as famosas ‘Beriozkas’) - https://www.nytimes.com/1983/07/03/travel/shopper-s-world-capitalist-s-guide-to-beriozkas.html);
- Grupos como aquele que eu integrei tinham privilégios inaceitáveis em relação à população: para conseguir um acesso a um espectáculo da programação normal da famosa Companhia do Teatro Bolshoi por exemplo, a população tinha de enfrentar uma lista de espera superior quase sempre a 1 mês e depois de obtido o ingresso, tinha de enfrentar as longas filas de acesso ao referido espectáculo. Pois bem, eu fui, que me lembre a dois espectáculos da Companhia (um deles ‘O Lago dos Cisnes’), não paguei qualquer ingresso e como o grupo era sempre acompanhado – nas deslocações organizadas – por um tradutor, passávamos, sempre, à frente de todas as filas.
(Excepção para uma visita à famosa torre de Televisão de Moscovo (Ostankino), onde fomos literalmente barrados à porta do elevador por uma corajosa septuagenária de ‘pêlo na venta’ e discurso adequado à sua revolta e que não abdicou do seu direito de precedência na entrada. É claro que quando chegamos todos lá acima, ela foi puxada para o lado por um ‘daqueles senhores’ de fato, gravata e sapato reluzente para uma ‘conversa adequada’...).;
- Uma outra situação que registamos e começou a contribuir para um lento e paulatino esmorecimento do nosso fervor revolucionário era a forma como se confundiam os patamares de decisão do governo do Estado e do Partido;
- Todos os membros dos grupos, mal chegavam à URSS adoptavam uma nova identidade à escolha de cada um e recebiam um novo ‘cartão de cidadão’ condizente com a mesma e comprometiam-se a salvaguardar a mesma na sua eventual correspondência com a família e amigos;
- Num País onde um trabalhador especializado ganhava na altura um salário médio de 80 Rublos (Excepção dos mineiros e outras profissões de especial dureza ou penosidade que ganhavam um pouco mais) – embora existisse uma pequena parcela de ‘salário indirecto na subsidiação da habitação e do acesso ao ensino, por exemplo – os grupos de formação estrangeiros, como o nosso, auferiam de uma ‘bolsa’ de 250 rublos. A título de exemplo e porque ele se tinha tornado num bom amigo com quem podíamos falar de tudo sem receio de delação, o Yuri, o nosso tradutor, licenciado, fluente em quatro línguas estrangeiras, casado e com dois filhos, ganhava menos de metade desse valor;
- Tínhamos direito a alojamento em instalações da própria escola (em quarto duplo) e condições especiais de pagamento das nossas refeições no restaurante também da escola;
- Eram privilégios indesculpáveis e duvido que fossem conhecidos do cidadão comum;
- Não admira portanto que, acabada a formação, muitos de nós estivéssemos já com a ‘moral revolucionária’ extremamente debilitada. Mesmo assim, ainda tivemos de aceitar sermos portadores de um envelope com 500 US Dólares em dinheiro para entregarmos ao Partido à chegada a Lisboa;
- Apesar de tudo e em abono do antigo regime (URSS) a sua expansão fazia-se mais através do combate ideológico levado a cabo por mensageiros (como nós) nos respectivos países, com vistas á implantação de ‘regimes amigos’ do que pela ameaça concreta do uso das armas – embora elas estivessem sempre 'à vista’ e alegadamente prontas a serem usadas, o que, convenhamos, é substancialmente diferente de usadas de facto.
- Ao contrário, o sistema híbrido-capitalista que resultou do fracasso do projecto protagonizado por Gorbatchev, (a actual Federação Russa onde agora impera o ditador Putin) é muito mais imprevisível e a sua preferência pelo recurso à guerra (a Ucrânia é o último exemplo) está sempre à frente de qualquer negociação e muito menos, do recurso à ‘catequização’ ideológica – até porque regimes como o da Rússia e ditadores como Putin não têm ‘catecismo’ nem nenhum suporte ideológico.
Breves notas finais:
- Sobre a actual ‘vinculação híbrido-dependente’ do nosso PCP ao actual formato do regime existente na Rússia, seria interessante saber como é que, ao nível interno por exemplo - porque os mensageiros têm de ser convencidos da bondade da mensagem - eles apresentam Vladimir Putin: como o camarada vizinho do camarada Lenin, que habita o Mausoléu privativo ali ao lado na Praça Vermelha?
- E sobre a formação teórica: será que ainda folheiam as Obras escolhidas de Marx/Engels/Lenin e filósofos como Afanasyev, entre outros?
- Será que alguns ainda recordam (se é que alguma vez leram) o Manifesto Comunista?
- Será que, ao contrário dos velhos comunistas – eu ainda fui a tempo de integrar essa classificação – os actuais camaradas têm (ainda) alguma ‘Meca’ onde possam renovar de vez em quando o seu fervor revolucionário? – República Popular da China, República Popular Democrática da Coreia do Norte, República Bolivariana da Venezuela, República de Cuba?...
- É que, desaparecida a, para os padrões do PCP, principal referência – a ‘pátria do socialismo’ (URSS) – não tivemos notícia de qualquer redireccionamento do ‘GPS’ dos camaradas vinculados e simpatizantes para outro(s) relevante(s) ponto(s) de referência...
- Podíamos até não concordar totalmente com o velho projecto de sociedade que nos era proposto por Marx e Engels, depois adaptado por Lenin à nova (da altura) realidade do mundo, mas pelo menos, tínhamos algo sobre que elaborar, reflectir, concordar e mesmo discordar, dando entretanto algum uso às ideias e aos neurónios que tínhamos activos. Porém desaparecido (ou caído em desuso) o substrato disponibilizado por esses pensadores ilustres, o que é que resta para a formação teórica dos actuais camaradas? A cotação em bolsa das acções da Gazprom, o número, características e poder letal das armas de destruição maciça das Repúblicas populares (socialistas) atrás referidas – incluindo a Federação Russa? O número de nazis existentes na Ucrânia ou o número de estropiados sitiados na siderurgia da Azovstal que resta aniquilar para que o camarada Putin possa (finalmente) declarar conquistadas as ruínas do que foi a bela Cidade de Mariupol?
12-05-2022